Uma cena que queria fazer há muito, muito tempo, e não arranjava maneira ou coragem de o fazer. E se esperar pelos cabelos brancos ainda espero um bom bocado (além de nem serem muito bons para isto, pelos vistos).
Não é pela parte da pintura do cabelo. Essa já fiz algumas vezes, não é nada do outro mundo, nem ameaça deixar-me careca.
Mas eu tenho cabelo castanho muito escuro, quase preto (podia ser preto, tinha mais graça). O que significa que, se quero pintar o cabelo, tenho de o descolorir primeiro, e esse processo é, sim, complicado, e não propriamente qualquer coisa que deva ou queira fazer em casa. A cabeleireira até nem é má pessoa, e já a vou conhecendo, pelo que é desta. É hoje.
Pintei o cabelo de roxo.
Não ficou exactamente no tom de roxo que quero, mas isso é fácil de corrigir. Durante uns poucos minutos vi como seria se fosse loira arruivada, e foi hilário... mas definitivamente não é o meu look.
Enfim, a partir de hoje passo a dar lucro também às senhoras da Manic Panic.
Porém, pela primeira vez em 31 anos e meio, amo o meu cabelo.
O ano anterior não quis admitir que me deixei cair, ir demais pelos meandros escuros que já conheço. Eu deixei de escrever; não era uma prioridade no meio da sobrevivência aos dias, era algo que eu sabia que queria fazer, mas chegava ao fim do dia demasiado exausta, no ponto onde nada bate a vontade de me enfiar debaixo dos cobertores e simplesmente esquecer-me de existir. E assim, mesmo que surgisse alguma ideia para uma publicação, o que surgiu sem dúvida, esta era aquele separador da internet que vamos deixando para trás, aberto é por circunstância, numa página que já mostra 99+ em separadores de coisas a fazer. Há muito que a memória RAM deixou de correr. Não sei de onde vem a música, e estou constantemente a congelar o ecrã, pelo que deixei correr. Provavelmente só vou parar quando ouver um desligar e ligar forçado. Não sei se quero estar aqui para sentir isso acontecer.
Sei que quero tentar mudar alguma coisa. A resposta correcta seria tentar aliviar a carga, mas isso implicaria ter de deixar para trás muito do que ainda gosto (eu pelo menos acho que ainda gosto). Ainda quero manter o blog. Ainda quero escrever. Também quero tocar, e fazer arte, e fazer todos aqueles projectos que comecei e aguardam uma resolução. Por muito que queira tirar coisas de cima do prato, apenas continuo a adicionar. Talvez seja essa a minha sina.
Consideremos o ano anterior como um ano sabático (apesar de não ser o sétimo ano do blog... hoenstamente, já não sei a quantos vamos... mentira, faz 13 de janeiro onze anos no Sapo, por outras bandas e com interrupções e percalços, bem à vontade mais de quinze anos).
Este ano, simplesmente, quero o mesmo que já quis nos outros anos, o mesmo que não tenho conseguido desde há muito tempo. Quero conseguir viver sem me sentir permanentemente gasta. Quero poder ter tempo para tocar, para fazer música, para montar o meu próprio projecto, pelo menos um dos discos planeados, para acabar de escrever pelo menos um capítulo do livro, para manter este blog em funcionamento razoável, sem sentir que esse tempo sai do meu corpo à custa de saúde e descanso.
Queria poder trabalhar com isso, mas infelizmente nasci e vivo no país e na cidade em que estamos, portanto, pouco ou nada há a fazer nesse departamento de queixas.
Espero que seja este ano que eu pelo menos consiga arranjar um emprego um pouco mais estável. E que consiga conciliar todas as coisas, embora ache isso impossível.
Não sei se é desta que acabo o mestrado (já nem sei em que pé isso anda).
Gostaria também que fosse este o ano em que finalmente descubro o que há de errado no meu corpo. Se é uma auto-imune, se são só alergias, se tenho quistos nos ovários ou afinal não (quero dizer, do que sei dos exames tenho um, mas dizem que é pequenino e não justifica nada do que tenho reportado...), se é só depressão e ansiedade ou se afinal tenho mesmo ADHD, ou outra. Para que fique registado, não quero diagnósticos para usar como desculpa (embora, às vezes, confesso, a tentação é muita... apresentar uma folha médica como alvará para não me dificultarem a vida ainda mais soa demasiado bem).
Mantenho-me a tocar, mesmo tendo perdido as aulas, porque não há horários disponíveis para quem trabalha. Mantenho a psicoterapia. Mantenho muita coisa, incluíndo uma incessante vontade de fazer explodir tudo.
Estamos de cara lavada (mais ou menos), vantagem de se estar a fazer uma formação muito criativa. Não fugi muito ao que tinha antes porque, bem, eu até gostava do que tinha antes (só que lhe puseram defeitos). E agora tem um pássaro.
Isto porque hoje não estamos a fazer nada hoje. Experimentem pôr uma sala de quinze computadores a baixar a Creative Cloud ao mesmo tempo e vejam o quanto conseguem fazer num dia. Entre os tantos, para a semana hão de recomeçar as aulas de instrumento, e vamos ver quanto mais o corpo aguenta fazer ao mesmo tempo. O ano passado não foi espectacular, este será ainda menos, ou tenho essa vaga sensação presente no assento do passageiro de trás da minha mente. Se tudo correr bem, é mais um passo na carreira de artista multifacetada capaz de fazer tudo; senão, é mais do mesmo.
A tristeza é perceber que a tablet (que na verdade é uma mesa digitalizadora) que guardei com tanto carinho desde os meus tristes dezasseis anos, está mais que morta (quinze anos fazem isto), está obsoleta e a caneta já dançou também, por falta de uso com certeza (mas tenho as pontinhas todas preservadas). Resultado, já que me pagam, esbanjemos, e portanto espero não ter de devolver dinheiro nenhum, uma vez que acabei de torrar uma boa parte dele numa Wacom. E o que dá graça, é que já naqueles anos, o pessoal babava pela marca; era o topo dos topos, o Porsche dos desenhadores digitais que pululavam o DeviantArt, o sonho. Hoje o sonho está mais acessível, e bem melhor construído, digamos. Mas não posso comparar uma Wacom ao que eu tinha, que era o mais barato das marcas da concorrência.
Aliás, a graça é eu estar a fazer uma continuação do que foi a minha adolescência muito artística nos reinos da web, embora sem regressar ao D'Art (ainda é vivo?), ou ao FanFiction.net (ainda existe?); e concluir que vi correr muita água, mas regresso ao que me é querido... ou mais ou menos...
Não podendo falar muito da formação, porque em instituições do estado é mesmo assim, parece que é necessário muito secretismo e que é um crime falar mal de; mas, não sendo má de todo, também não é extraordinária, ou muito boa... contava estar a aprender mais a desenhar, e dependendo de quem nos está a dar a formação, temos uma pessoa, possivelmente duas, que são muito boas e têm estado a fazer um bom trabalho (e sinto realmente que estou a aprender algo, que estou a criar ferramentas para o futuro), temos mais duas pessoas que são bons professores mas a unidade curricular é muito teórica e são mais rígidos, e temos dois que honestamente ainda não me ensinaram nada de novo, para além de não me cativarem e darem continuamente a impressão que ou sei mais que eles, ou ganhava mais a ler um livro... ainda por cima com a obrigação de ser simpática e amável e prestativa e amiguinha para todos os colegas, que incluí aquele que ocupa a rede de internet da sala a ver anime no youtube ou a pesquisar jogos na worten, e incluí o colega que é machista, classista, xenófobo, e provavelmente homofóbico e transfóbico também. Juntem a isso o facto de não termos nem metade do material necessário e prometido.
Estou com curiosidade mórbida para quando chegar a unidade curricular em que faremos captação e edição audio. Que vai ser exclusivamente em produtos Adobe, ainda que eu tenha um programa muito bom (Ableton) e 99% da comunidade música que eu conheço se estar a cagar para os produtos da Adobe (em contrapartida, para desenhadores e designers, lamento mesmo informar que são os melhorzinhos).
Daí que estou com um pé à frente e muitos quantos atrás.
Mas, quando terminar isto, diz-se por aí que serei uma artista multimédia. Provavelmente ainda desempregada, no entanto...
(o que eu já ganhei foi já ter apanhado mais uma dose de covid... again...)
Passou quase um ano sem que eu cá pusesse os pés - acho que deu para reparar nisso...
Não é que eu tenha deixado de gostar de ter blog, escrever em blog, interagir na comunidade dos blogs, mas... tem sido um (mais) um período mau na vida, não tenho tido paciência, nem vontade, nem zelo por isto, tenho andado como que empurrada pelas ondas que vêm e vão, e não faço nada, ou acho que não faço nada, que nunca fiz nada, e o psicólogo diz-me que afinal não tenho parado de fazer tudo, o possível e o semi-impossível, para... qualquer coisa.
Eu ainda quero escrever sobre coisas que se passaram, e vou escrever. Nas datas em que se passaram, por isso o blog de hoje vai crescer para trás, isto se eu conseguir manter esta centelha de foco e serotonina para o fazer. O meu cérebro tem sido cada vez mais teimoso e maniento neste aspecto. Já vos contei que estou com suspeitas de PHDA? Faria um sentido tremendo na vida. Mas como em tudo na vida, dependo de um diagnóstico que não posso ter já amanhã, porque não posso ir já amanhã a um psiquiatra. Estou para escrever uma lista de esquisitices que faço, comecei... não tem nem metade dos pontos ainda...
Aconteceram coisas, e houve coisas que eram para acontecer e não chegaram a acontecer.
E hoje, sentada numa sala cheia de mac's, eu que nunca mexi num e por causa deste curso vou ter de aprender a desenhar num, nenhum deles tem ligação à internet nem um terço dos programas necessários, o formador não tem internet nem pode dar formação, estamos a não fazer nada, vim finalmente aqui (porque trago internet de casa e um portátil pequenino sempre). E é nesta senda de olhar para equipamento topo de gama que não está a funcionar, como um burro olha para um palácio, que me deu na telha finalmente voltar, porque... não estou a fazer nada? Não posso fazer nada? Estando aqui não tenho como pensar que devia estar a estudar em vez de vir aqui.
Por isso vou encerrar este aqui, vou escrever para trás, e depois volto.
Ninguém me perguntou, mas sempre imaginei que me fizessem a pergunta, porque é que uma pessoa que se identifica como não-mulher, como trans, como não-binárie, como andrógine, se calhar a pender um pouco mais para a masculinidade, que quer remover os seios e vê isso como a liberdade corporal, festeja o dia da mulher.
Bom, para já, e primeiro que tudo, eu não posso mudar o facto de que nasci com uma vagina. E até certo ponto, nem quero. Talvez a minha vida até fosse mais fácil se eu tivesse um pénis de carne ali atachado no meio das pernas; e para hilariedade, como nasci ainda numa altura em que ecografias para saber o sexo do bebé ainda não eram comuns, apesar de ser uma gravidez que podia e foi considerada de risco e a médica saber e ter feito exames, até ao momento do nascimento estavam todos convencidos que seria um rapaz. Mas, nasci com uma vagina, e um mundo inteiro de dor (a expressão ficava melhor em inglês). E como nasci assim, e na certidão de nascimento o médico escreveu "feminino", delimitou-se um caminho à partida para mim, um caminho onde teria que usar muito rosa, gostar de brincar com Barbies, Nenucos, casinhas e maquilhagens, seria considerada fisicamente mais fraca, mentalmente mais burra, psicologicamente mais emotiva e hormonal; com essa caracterização, apesar das inúmeras campanhas para a igualdade de género, para a valorização da mulher, não consegui evitar que em certas situações fosse vista como menos do que um homem.
E em segundo lugar, porque a questão da base do feminismo é a mesma da questão da discriminação de pessoas trans e não-bináries; é a ideia de que o normal é o homem masculino, e que o outro género, que seria implicado ser obrigatoriamente o reverso da moeda, é inferior de alguma forma, seja porque é visto como menos forte, menos capaz, menos estável. Assim, aquele que à nascença foi identificado como homem, mas que diz ser mulher, é mulher, vê-se e sabe-se ser mulher, para esta mentalidade é aquele que abandona a posição de poder social para uma mais baixa, porque vê o ser mulher como uma posição social baixa. Já o processo inverso ao da mulher trans, o homem trans é simplesmente aquele que como todos quer ascender ao poder, mas tem de se controlar porque não podem ascender todos ao poder. E, no fundo, nunca é visto como verdadeiramente homem, porque não nasceu assim. Os não-bináries ficam no mesmo estatuto da mulher, ou pelo menos é mais isso que eu tenho sentido e observado (ou seria só porque nasci com uma vagina mas também não quero um pénis?).
No fundo, da forma que eu vejo e entendo o feminismo, a luta pelos direitos das mulheres já não é só a luta pelos direitos das mulheres, que ainda está longe de se dar por terminada, que ainda sofre passos atrás quando ainda se debate a permissão do uso de contraceptivos e do aborto, quando ainda se olha para a mulher como obrigada a gerar filhos e a ser mãe e se não o fizer não está completa, quando se olha para a mulher como menos capaz de executar alguns trabalhos, como alguém que não é capaz de liderar porque é instável e hormonal, incapaz de tomar decisões, ou que só fala de coisas desinteressantes, ou que são más umas para as outras porque é da natureza dela ser assim, quando na medicina a dor da mulher ainda é só entendida como exagero ou histeria. A luta dos direitos da mulher precisa incluir todas as mulheres; mulheres brancas que já beneficiaram desta; as mulheres negras, indígenas, asiáticas, de todas as etnias, em países onde sofrem racismo e nos países onde ainda são consideradas seres inferiores; as que estão sujeitas a mutilação genital e a obrigações de roupa e costumes; e as mulheres trans, e as pessoas que se identificam com um outro género, próximo ou distante do feminino; e as pessoas que nasceram com caracteres sexuais atribuídos ao feminino, seja uma vagina e útero, funcional ou com alguma patologia, ou incompleto. O feminismo deve conseguir responder a todas estas pessoas, ser a voz que assegura que se luta por todas as pessoas terem uma vida digna e plena, sem visões de inferioridade ou discriminações, sem obrigatoriedades sobre o corpo que é seu.
É mais por isso que eu continuo a apontar este dia. E não é pelas flores; sou alérgica.
A ponte fora construída na minha infância, já longe no tempo, em 84. Nesse Verão, eu, o Toninho e o Nando, tivémos de deixar as varas da pesca sossegadas no pó das nossas caves, e estávamos proibidos de ir nadar na ribeira enquanto a obra durasse, para nosso grande aborrecimento. Na verdade, a minha mãe também me tinha proibido de fazer precisamente o que mais fizémos naquele tempo; sentávamo-nos na encosta, na horta do Ferreiro, depois de saltar uma cerca de arame farpado que nos custou muitas calças, e olhávamos para a construção com olhos de gaiatos para quem aquilo ainda parecia espantoso. Não entendíamos bem o significado daquela estructura em cimento e pedra, de pernas grossas a lançar-se de um lado ao outro da ribeira; só queríamos que ela acabasse depressa para irmos nadar.
A ponte seria a única ligação entre a nossa aldeia e a vila, num caminho mais rápido e supostamente mais seguro. A alternativa era uma volta de quase meia hora pelos cabeços que, no Inverno, parte da estrada ficava alagada. A ponte era, portanto, um bem necessário que tinha sido pedido vezes sucessivas à Junta, e adiado. Até àquele Verão.
Também era bom para nós. Eu e o Toninho éramos da aldeia, e o Nando era menino da vila. De nós os três, era o mais distante, e o mais velho, além de ser um autêntico menino do coro. Bom menino, bem educado e bem falante, de boas famílias. E todas as tardes saltava pelo caminho de pedras no estreitamento da ribeira para vir ter connosco. Se chovia e a ribeira enchia, as pedras ficavam quase totalmente cobertas de água, e era um perigo atravessar. Já várias vezes esteve em risco. Se caísse, era arrastado pelas correntes sem saber onde pararia, se é que alguma vez voltaria à tona.
No final daquele Verão, a ponte ficou pronta. Custou, além do preço que a Junta teve de pagar e os donativos feitos pelas pessoas, a vida de vinte e sete trabalhadores. Lembro-me de ouvir comentar, à mesa, durante o jantar, que tantas mortes numa simples construção de uma ponte não era facto normal. Depressa o esqueci, com a chegada do Outono, e eu e os meus amigos pudémos andar à vontade ao pé da ribeira, uma vez terminada a obra.
Certo dia, porém, o último dia de Outubro, eu e o Toninho fomos apanhar romãs para a horta do Carvalho, mais acima da ribeira, enquanto esperávamos que o Nando chegasse, de tal maneira habituados que estávamos aos atrasos dele. Não veio. Achámos que estava demasiado ocupado com o coro, ou constipado, e que por isso não vinha. Apesar disso, havia uma sensação estranha no meu corpo quando olhei para a ponte e para a ribeira. Tinha arrepios. Nessa noite, cheguei a casa e encontrei a minha mãe pálida e chorosa. Havia qualquer coisa errada, porque me esperavam todos na sala, e olhávam para mim.
– Estiveste na ribeira hoje?
Abanei a cabeça, e menti. Disse que tinha ido à orla do matagal a dois cabeços de distância. E então contaram-me.
Naquela tarde, o Nando tinha-se escapulido e ido até ao caminho de pedras, para o atravessar e ir ter connosco. Podia ter usado a ponte, mas por algum motivo que não entendemos, preferiu fazer mais uma sessão de equilibrismo no meio da ribeira. No entanto, a nova ponte provocou, entre outras coisas, um afunilamento ainda mais acentuado ali. Calculou mal isso, e um pé que escorregou quando não devia. Foi arrastado sem misericórdia, debaixo de água, e encontraram-no a uns setecentos metros da ponte. O meu pai disse-me, em voz grave:
– O Fernado morreu. – E a minha mãe soluçou.
Fiquei pregado ao chão, sem saber o que dizer. Ouvi o resmungo: – Maldita ponte!
No funeral, eu e o Toninho ficámos calados quando todos choravam. Acharam que estávamos em estado de choque, e não o negámos, mesmo que não soubéssemos se estávamos realmente assim, ou só sem vontade de estar ali. Nessa altura, começava também o medo da ponte. Depois do Nando, dois carros colidiram no meio da ponte, um nadador solitário afogou-se sob os seus pilares, mais alguns carros que se precipitaram pela ribanceira abaixo e até o leiteiro, um indivíduo aparentemente normal, se atirou da ponte. As velhas começaram a benzer-se sempre que lá passavam, surgiam boatos de fantasmas e demónios que apareciam na ponte, e as pessoas coemçavam a evitar usá-la. Nós deixámos de ir brincar para perto da ribeira; ficávamos em casa, a beber Toddy e a ver o que quer que estivesse a dar na televisão, àquela hora. Até ao dia em que fui estudar para a cidade.
Quando me fui embora, o Toninho, anos depois de tudo, voltou ao seu hábito de ir pescar na ribeira, mesmo ao lado de um dos pilares da ponte. Anos mais tarde, no último dia de um Outubro, estive mal durante todo o dia, com uma apreensão que me consumia o peito. A minha mãe telefonou-me nesse serão, outra vez chorosa e de voz a tremer.
Naquela manhã, ele tinha aproveitado o bom tempo livre que tinha para ir pescar para o almoço. Metera-se entre umas pedra e o pilar da ponte, e nem vira onde pusera os pés Para piorar, ia descalço. Não viu, também, a cobra que lá estava e que lhe mordeu o tornozelo. Foram-no encontrar, deitado de bruços e agarrado à cana de pesca, mesmo ao lado do pilar cuja fenda era já um ninho de cobras.
– O António morreu.
– Maldita ponte!
Não voltei à minha terra durante largos anos. Tive de continuar a minha vida na cidade, acabar os estudos e arranjar um emprego. A minha mãe continuou a telefonar-me sem, contudo, mencionar mais alguma vez a ponte. Até ao útlimo dia de Outubro, nos meus trinta e quatro anos, em que voltei. De carro, passei por aquelas terras que conheci em criança e que agora me eram estranhas. Os sobreiros e os pedregulhos quem que me empoleirei quando miúdo, com os meus amigos que já não existiam, a modesta ribeira agora cheia, as hortas, as casitas, os montes. E a ponte lá continuava, imóvel. Por causa dela, eu perdera os meus amigos,e a minha paz. Eu estava sozinho. Ia visitar os meus pais para não me sentir tão sozinho.
Uma vez lá, fui abraçado e beijado pela minha mãe, e o meu pai perguntou-me pela vida, o que me levou a uma série de mentiras. Fiquei por uma tarde, na qual relatei a minha monótona e solitária existência, omitindo umas partes e falsificando outras. Chegou a hora de me despedir deles e voltar para uma vida que me sabia a amargo na boca. Não queria. Queria fincar os pés e ficar ali, voltar a ser criança, beber Toddy com os amigos e comer bolachas, a olhar para a televisão à espera dos desenhos animados, em expectativa. Não podia. Despedi-me dos meus pais como se nunca mais os fosse voltar a ver. Beijei-lhes as faces, disse-lhes que os amava. Chorei. Mesmo no carro, chorava. Já via a ponte ao longe, e parecia que brilhava sinistramente ao luar.
– Maldita ponte!
Naquela hora, mais do que nunca, uma onda de ódio puro pela ponte invadiu-me. Odiava tanto aquela estrutura, achava-a verdadeiramente maléfica. Abominável coisa que tresandava a morte.
Não cheguei sequer a entrar nela. Com uma guinada vinda não sei de onde, uma chapada dada por uma mão invisível, o carro precipitou-se ao lado da ponte. Voei ao lado do tabuleiro por breves segundos que se pareceram congelar no tempo. A sombra da ponte perpassou por mim.
Quando o carro encontrou a água gélida da ribeira, na noite, já eu não sentia. Perdera-se-me a alma na sombra da ponte maldita.
Mais um ano, mais uma volta, mais uma celebração de aniversário de um morto que se fosse vivo provavelmente não gostaria de mim (ou pelo menos gostaria da parte de gastar dinheiro nele, para o resto seria apenas uma triste pacóvia).
Não comprei ainda mais nenhum livro sobre ele (ainda pesquiso por qual seria a biografia mais sensatamente estudada e crível, e obviamente sendo estrangeira, porque suspeito que Portugal nunca teria um mercado justificável para a sua tradução e o quão triste é depender deste conceito de haver mercado suficientemente lucrativo para se ter um livro em português, que seja possível adquirir sem pagar o meu peso em ouro em taxas de alfândega, portes de envio e outros que tais). Sem novo livro, sem muito mais pesquisa, não tenho mais curiosidades para oferecer.
O ano lectivo passado aprendi o Capricho 13. A peça que tenho como toque no telemóvel, e que me rendeu entre umas quantas histórias, o pntapé de saída para a criação do primeiro blog nesta plataforma, entretanto já morto e com mudanças pelo meio até hoje.
Ainda levei uns meses na empreitada, culminou com uma audiçãozinha como é costume, onde (quase) todos os alunos tocam. Já não me lembro se foi nessa que à saída um dos pais dos outros me elogiou, mais uma vez, que "toco sempre bem" (que seria à partida mais impressionante, não tivesse eu o dobro da idade da maioria dos alunos e uma licenciatura no instrumento e estivesse ali na verdade porque falhei a "tocar bem").
Só que, foi uns meses atrás. E apesar de ainda ter tentado voltar a estudá-lo umas duas semanas antes, hoje tento fazer gravações e acabo por detestar o som que fica gravado. Sempre detestei, diga-se de passagem, e não consigo perceber inteiramente se é só culpa do material de gravação ser um microfone ranhoso, se sou eu que não tenho a percepção certa do que estou a fazer (porque as coisas soariam diferentes se eu me ouvisse a tocar fora do meu corpo, e de ter uma fonte de emissão sonora a um palmo da orelha e colada ao queixo... da mesma forma que a nossa voz ouvida de "fora" é diferente).
Portanto, nem uma gravação tenho para mostrar. Na altura debati-me se me devia gravar na audição, ou não, e ganhou o não porque seria complicado estar a pedir a alguém, ou montar o estojo no meio do público. E acabo por não ter gravações nenhumas.
(Antes que me perguntem, não, não tenho ninguém que me filme do público, porque não tenho ninguém que lá vá de propósito para me ver.)
Não passei a data em branco (ainda tirei uma foto com a caixinha de música).
Pensado bem, é uma pena que o Paganini também já não existisse quando começámos a gravar os primeiros sons em rolos de parafina. Ou talvez seja mesmo isso que contribua para a mística. Ninguém pode dizer que tocaste mal se não tem provas audio de que tocaste mal...
Não é utilizado o novo acordo ortográfico, ou nenhum acordo ortográfico que tenha existido. De facto, aqui escreve-se pela grafia mais conhecida ou mais amiga da oralidade, inventam-se palavras e distorce-se a linguagem sempre que necessário.
A língua é viva.